Savana
Savana – um jornal nacional de Moçambique

Isabelle Dena, uma estudante de doutoramento em Saúde Comunitária e Epidemiologia, Faculdade de Medicina da Universidade de Saskatchewan, publicou recentemente em português, no Savana, um jornal nacional de Moçambique. O artigo foi publicado pela primeira vez em inglês no Regina Leader Post em 26 de agosto de 2020.

Seu artigo de opinião, intitulado “O impacto da COVID-19 sobre a saúde mental dos grupos mais vulneráveis,” contribua para as discussões sobre os impactos desiguais do COVID-19, a saúde mental, e o papel da mídia nos processos de racialização que, embora focados no norte global, incentiva leitores a pensar sobre como essas mesmas questões são vividas e tratadas em Moçambique.

Agora, mais do que nunca, há uma urgência mais forte em priorizar o tratamento de saúde mental entre a população negra, escreve Isabelle Dena.

Existe a previsão de que a “quarta vaga” da pandemia da covid-19 venha a atingir pro-blemas ligados à nossa saúde mental. O que ainda não sabemos é se essa vaga será um tsunami ou apenas um pequeno aumento. O que pode-mos assumir é que ela poderá afectar a todos, directa ou indirectamente. Estaremos preparapados? Quem será o primeiro a ser resgatado?

Apesar de todos estarmos afectados pela covid-19, a população negra nos Estados Unidos e no Canadá enfren-ta uma dupla crise, que para além da doença inclui o racismo. Agora, mais do que nunca, há a necessidade mais do que urgente de priorizar o trata-mento de potenciais doenças mentais entre a população negra destes dois países.

Nos meses mais recentes, a cobertura da imprensa tem tido um importante papel em influenciar a percepção e o comportamento do público. Veja-se a cobertura da media sobre os efeitos do coronavírus sobre as comunidades negras, em comparação com os ou-tros grupos.

A escolha de palavras para os títulos e para os conteúdos projecta uma imagem negativa dos negros. Por exemplo, “Corona espalha terror nos bairros dos afro-americanos”, ou “o coronavírus está a infectar e a matar os negros americanos a um ritmo alarmante”, ou ainda, “negros ame-ricanos estão a ser dizimados pela dupla pandemia”, ou “porque é que os negros têm um risco mais alto do coronavírus”.

Esta pandemia tem estado já a am-plificar questões subjacentes sobre o racismo, discriminação, desigual-dades de acesso à saúde e contínuas desvantagens e marginalização das comunidades negras. A forma como a media apresenta as comunidades negras em relação a esta pandemia é uma forma de microagressão que re-força os estereótipos negativos sobre os negros como minoria. Raras vezes a media mostra deliberadamente fo-tos ou imagens de resiliência no seio das comunidades negras. Há necessi-dade de uma visão equilibrada sobre as nossas comunidades.

A projecção das comunidades negras como sendo profundamente afecta-das por doenças reforça o estereótipo de que os negros são um grupo in-capaz de enfrentar os seus próprios problemas. A media já criou um en-tendimento sobre quem é mais afec-tado pela pandemia; contudo, ela não está a abordar as questões mais sub-jacentes sobre porque é que a pande-mia afecta de forma desproporcional a população negra.

Tudo isto acontece no contexto de uma cada vez maior visibilidade so-bre a opressão dos negros, como ilus-tram as recentes mortes de Ahmaud Arbery, George Floyd, Breonna Taylorin, entre outros, nos Estados Unidos, e de Regis Korchinski-Pa-quet, no Canadá. Todos estes casos foram seguidos de intensas manifes-tações de protesto contra a brutalida-de da polícia, e eles podem também reforçar a ideia da necessidade do reforço de medidas para abordar a questão da saúde mental no seio da população negra nos Estados Unidos e no Canadá.

A contínua exibição da imagem da morte de George Floyd em vídeo, por exemplo, ao nível da media, de-monstra uma falta de sensibilidade, a desvalorização desproporcional dos corpos de negros. Uma vez visto o ví-deo, já não pode deixar de ser visto. Como negros, precisamos de espaço para respirar e tomarmos conta de nós próprios, mas não podemos avan-çar com um bombardeamento cons-tante. Basta também prestar atenção à forma como os últimos protestos contra a brutalidade policial nos Estados Unidos e no Canadá estão a ser cobertos pelos media. A constante barragem de imagens negativas sobre o sofrimento de negros na media e nas redes sociais é tóxica.

O papel da media precisa de mudar A exibição crua da imagem do negro como um ser sofrido é traumatizante e desumanizante. Os efeitos acumu-lados de ser exposto a sentimentos anti-negros, através da media, nas redes sociais, na forma de vídeos, manchetes e fotos de manifestantes negros pode evocar diferentes emo-ções negativas que podem induzir ao stress, indo descambar, por sua vez, em situações de perturbações men-tais. Isso provoca dor, trauma e zanga, abrindo feridas profundas. Este é um trauma racial, e sentimo-lo nos nos-sos corpos, sempre que se nos é feito recordar da nossa condição. A media precisa de ter sensibilidade, devendo prestar atenção à forma como pro-jecta a imagem dos negros, para não provocar uma dor colectiva.

As imagens negativas a serem exibi-das pelas várias plataformas da co-municação social podem ser interio-rizadas como verdadeiras, quer pelos próprios negros quer por outros gru-pos raciais. Precisamos de confrontar as questões da marginalização da população negra nos Estados Uni-dos e no Canadá e de quebrarmos o status quo. Infelizmente, actualmen-te a única forma como os negros são “vistos” é quando são tratados como estatísticas. Se a Covid-19 e a actual onda de protestos contra a brutali-dade da polícia não nos servirem de motivação para priorizar a questão da saúde mental nas comunidades negras, devemos saber que estamos a cometer uma grande injustiça social. Torna-se crítico que os media te-nham uma abordagem equilibrada na sua apresentação informativa, reforçando os princípios éticos, par-ticularnente neste momento de ele-vada sensibilidade e de escalada do racismo anti-negro. A maioria da po-pulação negra sente-se ferida, e a co-municação social pode desempenhar um papel importante na dissemina-ção de uma mensagem de esperança, no lugar de perpetuar e de induzir ao traumatismo racial. Olhando para o futuro, é imperioso que todos os pro-fissionais de saúde mental reconhe-çam que os últimos acontecimentos têm um impacto significativo sobre a saúde mental de uma grande franja da população negra no Hemisfério Norte.

Isabelle Dena tem mestrado em serviço social e é assistente social registrada em Saskatchewan, Canadá. Actualmente, ela é estudante de doutoramento sob a supervisão do Dr. Nazeem Muhajarine, Departamento de Saúde Comunitária e Epidemiologia da Universidade de Saskatchewan, e Investigador Principal do Projecto Saúde Materna Moçambique – Canadá.

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